Leiamos os versículos precedentes ao texto citado
para isso ficar ainda mais claro: “14. E tu (Timóteo), permaneça fiel ao que
tens aprendido e de que estás firmemente convencido, sabendo de quem o
aprendeste. 15. E que desde a infância conheces as Sagradas Escrituras, que
podem dar-te a sabedoria que leva à salvação mediante a fé em Cristo Jesus. 16.
Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para convencer, para
corrigir e para educar na justiça, 17. assim o homem de Deus pode ser perfeito
e preparado para toda boa obra”. Como se vê, S. Paulo insta a Timóteo a
permanecer fiel àquilo que está firmemente convencido, citando dois fundamentos
para isso: 1. Timóteo sabe de quem aprendeu tudo isso: através do ensino oral
do próprio apóstolo. 2. Desde a infância, Timóteo se familiarizou com as
Sagradas Escrituras, constituindo esta o segundo fundamento para a sua crença.
Desse modo, em vez de 2 Tm 3,14-17 defender a Sola Scriptura, nos aponta na
realidade duas regras de fé: a Tradição apostólica e a Santa Escritura.
Portanto, quando os solascripturistas citam os versos 16 e 17, estão isolando a
última parte de uma dupla afirmação de regra de fé: a Tradição e a Bíblia, o que
contradiz a Sola Scriptura.
Ainda: a que Escritura se referiu o apóstolo? Paulo
morreu mais ou menos em 67 dC, de modo que 2º Timóteo foi escrito antes desse
ano. Sendo assim, não existia o NT na época de 2Tm! Muito menos durante sua
infância (período a que se refere o apóstolo). Também sabemos que o NT não
existiu por centenas de anos após a redação dessa carta. A única Escritura
disponível para S. Paulo era o AT. Logo, se esse texto favorece a exclusividade
da Escritura, na realidade, favorece a exclusividade do AT. Assim, ninguém pode
usar este versículo para justificar a Sola Scriptura, a não ser rejeitando todo
o NT.
Outro detalhe importante: A única Escritura
disponível naquele tempo era o AT hebraico, como também sua tradução grega, a
chamada Septuaginta. Isso leva todo protestante a ter que aceitar os livros
“deuterocanônicos”, que estavam na Septuaginta grega, usada pelos judeus de
língua grega, inclusive S. Paulo, e que é a mesma versão da Igreja Católica
(Sabemos que das 350 citações que o NT faz do AT, 300 foram feitas da
septuaginta.). Já que estas duas traduções eram as únicas disponíveis para o
apóstolo e ele disse que toda Escritura era inspirada por Deus, então ele está
incluindo também os sete livros excluídos da Bíblia protestante, que estavam
inclusos na Septuaginta grega. Sendo assim, os deuterocanônicos deveriam ser
respeitados, até porque como exige o princípio da Sola Scriptura, eles são
citados centenas de vezes na Bíblia.
Um último detalhe: como Paulo falou que toda a
Escritura é inspirada, então a afirmação deve incluir todos os versos que até
mesmo mencionam a Tradição, como, por exemplo, 2 Ts 2, 14.15.
O que S. Paulo, na realidade, está dizendo aqui em
2 Tm 3,16 é que a Escritura é realmente inspirada por Deus, e que por ser
inspirada é útil para preparar-nos para toda boa obra. No entanto, isso não
exclui outros itens. No contexto imediato (vv.10-14) em relação à salvação,
assim como a áreas de desenvolvimento espiritual, o apóstolo apresenta os
vários outros itens que nos preparam, incluindo a Tradição oral. O apóstolo
apresenta as Escrituras apenas como uma dessas várias peças que nos preparam,
não a única.
2ª dúvida: Para provar ou defender a verdade, Jesus
sempre usou as Escrituras e somente elas. (Mt 4,1-11). Nunca apelou para fontes
extrabíblicas. A única vez que Jesus mencionou a tradição oral dos judeus foi
para condená-la. (Mc 7, 7-13) Ele simplesmente mandava as pessoas lerem. Mc
12,24; Mt 12, 3.5; Mt 21; 42; Lc 10, 26; 20.17; Jo 5, 39. Os cristãos
primitivos também usavam somente as Escrituras para determinar a verdade. Veja,
por exemplo: Atos 17, 2.11.28. No caso dos bereanos, notemos que eles foram
direto nas Escrituras para determinar a verdade final. A Tradição oral não tem
valor sem o testemunho das sagradas Escrituras! Vemos ainda que Paulo não
censurou os bereanos, antes foram elogiados por Lucas como “mais nobres” do que
os outros por aderirem ao princípio da Sola Scriptura.
Resposta: Inúmeras vezes, Jesus e os primeiros cristãos
citaram as Escrituras, isso não é nenhuma novidade, mas daí querer concluir que
eles só aceitavam a Escritura como autoridade é extrapolar para afirmação que
não consta nem ao menos implicitamente na Bíblia. Embora Jesus e os primeiros
cristãos tenham citado as Escrituras isso nem de longe nos conduz à Sola
Scriptura, primeiro porque pelo termo “Escrituras”, todos eles entendiam algo
quase totalmente diferente da Bíblia que temos hoje. Para Jesus e os primeiros
cristãos as Escrituras compreendiam, por exemplo, todos os livros
deuterocanônicos (ausentes da Bíblia protestante); alguns livros considerados
apócrifos (estando, igualmente, ausentes das Bíblias protestantes): o Livro de
Esdras I, Macabeus III e IV, Odes e os Salmos de Salomão); além disso, ela não
continha também os livros do NT. Por isso, citar trechos do NT em que Jesus e
os primeiros cristãos citam o AT prova apenas que o AT possui autoridade
doutrinária, não que seja prova da “Sola Scriptura”, uma vez que nem Jesus, nem
seus primeiros discípulos, defenderam o “Solo Antigo Testamento”. E é
impossível que Jesus e seus primeiros discípulos ensinassem o Solo Antigo
Testamento, pois o AT não foi suficiente para ensinar sobre a Nova Aliança. Ou
foi? Será que o próprio fato de os apóstolos terem que escrever novos livros
para demonstrar que Jesus é o Cristo, por si só já é o suficiente para provar a
insuficiência do AT para demonstrar essa verdade?
Segundo, porque é uma tremenda inverdade dizer que
Jesus e seus primeiros discípulos nunca apelaram para fontes extrabíblicas e
que usaram somente as Escrituras. Várias vezes, Jesus e os cristãos primitivos
apelaram, por exemplo, para sua própria autoridade, mesmo que ela se chocasse
com a letra das Escrituras. Veja-se, por exemplo, o texto de Mateus 5,
21.22.27.28.33.34.38.39.43.44, no qual, após dizer “Ouvistes o que foi dito…”,
referindo-se às Escrituras, Ele acrescenta: “Eu, porém, vos digo…”. O que
claramente demonstra a sua autoridade. Se Jesus fosse solascripturista com
certeza não apelaria para sua autoridade, mas tão somente para a da Escritura.
Os primeiros cristãos, semelhantemente, pois várias vezes os vemos impondo sua
autoridade. Basta vermos, por exemplo, a decisão do Concílio de Jerusalém em At
15, 28.29 e 16, 4. Além disso, vemos inúmeras vezes os apóstolos fazendo
afirmações que se chocam com a letra do AT. Se os primeiros cristãos fossem
realmente solascripturistas não teriam proposto novas normas ausentes e até
contrárias a muitas do AT. No AT eles não podiam, por exemplo, demonstrar
nenhuma passagem que provasse que a lei antiga já ultrapassara e que surgira a
nova, como afirmaram inúmeras vezes (Hb 8, 13, por exemplo). Onde citariam
também no AT que as leis citadas nos textos de Ex 23,10-11; 35,1-3; Lev
11,1-47; 17,10-14; 19,19. 23-26; 20,9-27; 24,10-23; 25,3-5, por exemplo, seriam
abolidas? Onde ainda poderiam provar que a circuncisão seria abolida? Em
Gálatas 6, 15, por exemplo, Paulo não se choca com a letra do AT que afirmava a
necessidade da circuncisão? Como ele faria isso, se sua base fosse unicamente a
Escritura e essa mesma Escritura nunca afirmara a abolição da circuncisão? Como
também os apóstolos e seus discípulos teriam escrito o NT, se no antigo
recomenda-se nada acrescentar nem tirar (Deut 4, 2; 12, 32; Jos 1, 7.8)?
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