sexta-feira, 24 de julho de 2015

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IMG_4394Você já pensou em sua morte no Shalom? Perguntou-nos, certo dia, o Moysés, como se diz: “na bucha”. Levando-se em conta que éramos todos bastante jovens, que o tema da morte não povoava nossos pensamentos e que, pelo contrário, tínhamos uma crédula certeza de que nenhum de nós morreria, nenhum teria problemas sérios, nenhum enfrentaria desafios intransponíveis ou sequer ficaria doente, a pergunta teve impacto particularmente forte sobre nós. Tanto que até hoje não esqueço aquele dia, aquela pergunta, aquela sabedoria.
Depois do primeiro choque, suspirei aliviada, feliz, orgulhosa de mim mesma: sim, já havia pensado em minha morte no Shalom. Havia imaginado uma cama com lençóis muito brancos, a luz tênue a entrar pela janela e eu lá, deitada, doente, mas feliz, cercada de irmãos que rezavam e me assistiam passar da terra ao céu. Se corresponderá à realidade ou não, só Deus poderá dizer. O que me interessava no momento era estar adequada, era saber que estava no caminho certo: sim, a santa aqui, a maravilhosa, a impecável aqui já tinha pensado na sua morte no Shalom. Ufa! Havia escapado por pouco!
Enquanto eu me orgulhava de ser tão santa, o Moysés passou rapidamente ao assunto da palestra. Não era a morte, mas a vida. O assunto era o grau de comprometimento e entrega à vocação, o grau de convicção sobre o Carisma. Rapidamente, as perguntas que se seguiram fizeram desvanecer minha romântica visão de santa-em-leito-de-morte: havíamos, realmente, entendido o que Santa Teresa queria dizer com “para sempre, para sempre, para sempre…”? Ou achávamos que a vocação é algo que posso abraçar hoje e descartar amanhã?
Nossos olhos não desgrudavam do fundador tão jovem e magrelo que Deus havia enchido de sabedoria para fazer despertar em nós o Carisma e nos ensinar a viver a Vocação: saberíamos o que significa consagrar-se? Dar-se todo a Deus? Entregar-se inteiramente? Entregar-se intensamente agora e para sempre, para sempre? Saberíamos o que significa ser todo de Deus, sem dividir nada consigo mesmo, com o mundo, com os outros? Saberíamos o que significava ser inteiramente de Deus e não compactuar com o mundo? Teríamos consciência do que significa seguir Jesus, após ter deixado tudo?
Ou achávamos que podíamos nos consagrar por um ano e no ano seguinte mudar de ideia? Estávamos convictos de que, embora nos consagrássemos pelo período de um ano, isso era uma mera formalidade, já que nossa entrega e consagração eram para sempre?
Morrer no Shalom, significava viver Shalom, não viver no Shalom. Pensar na própria morte no Shalom era sinal certo de que acolhíamos os novos irmãos como irmãos-para-sempre, a nova pobreza como pobreza-para-sempre, a nova obediência como obediência-para-sempre, a nova castidade como castidade-para-sempre, sem meias medidas, mas na intensidade e integralidade de nosso ser.
Em suas pregações – e ações – o Moysés sempre foi muito intenso. Não admitia meios termos nem conosco, nem consigo mesmo, nem com a Obra. Era tudo ou nada. O morno nem sequer era vomitado, porque nem era cogitado. A Mensagem à Igreja de Laodicéia (Ap 3, 14ss) era frequentemente citada por nós, que a sabíamos de cor, com capitulo, versículo e tudo o mais. Os mornos eram identificados com os covardes e, como está bem claro no escrito Obra Nova, estes não estão prontos para a Obra que Deus quer realizar. É melhor voltarem para casa.
Sua pergunta sobre se já havíamos pensado em morrer no Shalom, nós, cinco ou seis gatos pingados, parecia desproporcional ao nosso número e nossas forças. Porém, em se tratando de tempo de fundação, trata-se sempre de profecia. Estávamos começando e não enxergávamos um palmo adiante do nariz, perseguidos e incompreendidos de todos os lados. Algo no fundador, porém, via um futuro tão distante e com anos tão mais numerosos que os de uma pessoa humana que todos nós, entre 18 e 33 anos, morreríamos no Shalom e seríamos ultrapassados, em muito, por ele.
Na época, não sabíamos o que significava um Carisma, jamais tínhamos ouvido a história da vida consagrada, nem a expressão Seqüela Christi. Não tínhamos como entender a perenidade de um Carisma. Tínhamos, porém, pela ação da graça, como intuir tudo isso e, neste dia inesquecível, compreendemos intuitivamente que Deus tinha algo maior, muito maior para nós.
Os Escritos, se já redigidos, não estavam impressos, as Regras, pelo quem lembro não existiam. Os conceitos eram muito poucos, as intuições, porém, eram numerosas. Olhos arregalados, intuíamos, sem conceitos: Deus fará uma coisa muito maior e mais duradoura do que imaginamos. Vamos morrer no Shalom.
A partir deste dia, nunca mais renovei minha consagração sem pensar nisso. Minha ideia de morte está bem menos romântica – e bem mais perto de realizar-se. Meus conceitos sobre Carisma, Consagração, Vocação, Espírito do Fundador, bem mais claros – ou melhor, pelo menos existentes. Meus conhecimentos sobre a história da Igreja e da Vida Consagrada cresceram um pouco – especialmente se considerar que não sabia nada. Posso até saber mais, até pensar coisas mais “adequadas” para uma formadora geral. No entanto, tudo isso e muito, muito mais, continua cabendo em uma frase, que se repete a cada renovação: Você já pensou em sua morte no Shalom?
Você re-escolhe ser Shalom? Re-escolhe viver Shalom? Re-escolhe morrer Shalom? Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-o e respeitando-o todos os dias de sua vida? Você sabe que nem a morte separará vocês, porque um carisma é imortal? Você sabe que será plenamente Shalom no céu, para sempre, para sempre, para sempre?
Você re-escolhe os irmãos e irmãs, sejam quem forem, sejam como forem? Você re-escolhe, com toda intensidade para sempre, para sempre, para sempre, a obedência-intensa-para-sempre? A pobreza-intensa-para-sempre? A castidade-intensa-para-sempre?A contemplação-intensa-para-sempre? A unidade-a-todo-preço-intensa-radical-e-para-sempre? A evangelização-formação-experiência-com-Jesus-Cristo-continua-intensa-para-sempre?
Vinte e um anos depois, vinte e uma vezes um “sim” a tudo isso e a muito mais, às portas de nossos compromissos perpétuos, podemos continuar a medir, por esta pergunta, nosso amor comprometido para sempre, nosso desejo de ser fiel.
A Obra já nos ultrapassou há muito tempo. Muitos entraram “por um tempo”, mas nunca saíram do mistério da fraternidade. Outros, já vivem o Shalom no céu. O Carisma torna-se mais belo quanto mais contemplado. A Vocação reconhecida, respeitada, mas – exatamente por isso – mais desafiadora do que antes. No entanto, às vésperas de nos entregarmos para sempre, como filhos e servos da Igreja, continua a ecoar, como prumo de uma balança, como pedra de toque, a pergunta que tudo diz:
Você já pensou em sua morte no Shalom?

Maria Emmir Oquendo Nogueira

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