165. O amor sempre dá vida. Por isso, o amor conjugal «não se esgota
no interior do próprio casal (...). Os cônjuges, enquanto se doam entre
si, doam para além de si mesmos a realidade do filho, reflexo vivo do
seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e
indissociável do ser pai e mãe».[176]
Acolher uma nova vida
166. A família é o âmbito não só da geração, mas também do
acolhimento da vida que chega como um presente de Deus. Cada nova vida
«permite-nos descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca cessa
de nos surpreender. É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são
amados antes de chegar».[177]
Isto mostra-nos o primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa,
porque os filhos «são amados antes de ter feito algo para o merecer».[178]
Mas, «desde o início, numerosas crianças são rejeitadas, abandonadas e
subtraídas à sua infância e ao seu futuro. Alguns ousam dizer, como que
para se justificar, que foi um erro tê-las feito vir ao mundo. Isto é
vergonhoso! (...) Que aproveitam as solenes declarações dos direitos do
homem e dos direitos da criança, se depois punimos as crianças pelos
erros dos adultos?»[179]
Se uma criança chega ao mundo em circunstâncias não desejadas, os pais
ou os outros membros da família devem fazer todo o possível para
aceitá-la como dom de Deus e assumir a responsabilidade de a acolher com
magnanimidade e carinho. Com efeito, «quando se trata de crianças que
vêm ao mundo, nenhum sacrifício dos adultos será julgado demasiado
oneroso ou grande, contanto que se evite que uma criança chegue a pensar
que é um erro, que não vale nada e que está abandonada aos infortúnios
da vida e à prepotência dos homens».[180]
O dom dum novo filho, que o Senhor confia ao pai e à mãe, tem início
com o seu acolhimento, continua com a sua guarda ao longo da vida
terrena e tem como destino final a alegria da vida eterna. Um olhar
sereno voltado para a realização final da pessoa humana tornará os pais
ainda mais conscientes do precioso dom que lhes foi confiado; de facto,
Deus concede-lhes fazer a escolha do nome com que Ele chamará cada um
dos seus filhos por toda a eternidade.[181]
167. As famílias numerosas são uma alegria para a Igreja. Nelas, o
amor manifesta a sua fecundidade generosa. Isto não implica esquecer uma
sã advertência de São João Paulo II, quando explicava que a paternidade
responsável não é «procriação ilimitada ou falta de consciência acerca
daquilo que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a
faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo
sábio e responsável, tendo em consideração tanto as realidades sociais e
demográficas, como a sua própria situação e os seus legítimos desejos».[182]
O amor na expectativa própria da gravidez
168. A gravidez é um período difícil, mas também um tempo
maravilhoso. A mãe colabora com Deus, para que se verifique o milagre
duma nova vida. A maternidade surge duma «particular potencialidade do
organismo feminino, que, com a sua peculiaridade criadora, serve para a
concepção e a geração do ser humano».[183] Cada mulher participa do «mistério da criação, que se renova na geração humana».[184] Assim diz o Salmo: Senhor, «formaste-me no seio de minha mãe» (Sl
139/138, 13). Cada criança, que se forma dentro de sua mãe, é um
projecto eterno de Deus Pai e do seu amor eterno: «Antes de te haver
formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio
de tua mãe, Eu te consagrei» (Jr 1, 5). Cada criança está no
coração de Deus desde sempre e, no momento em que é concebida,
realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o embrião,
desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso do
Pai, que vê para além de toda a aparência.
169. A mulher grávida pode participar deste projecto de Deus,
sonhando o seu filho: «Toda a mãe e todo o pai sonharam o seu filho
durante nove meses. (...) Não é possível uma família sem o sonho. Numa
família, quando se perde a capacidade de sonhar, os filhos não crescem, o
amor não cresce; a vida debilita-se e apaga-se».[185]
Neste sonho, para um casal cristão, aparece necessariamente o baptismo.
Os pais preparam-no com a sua oração, confiando o filho a Jesus já
antes do seu nascimento.
170. Hoje, com os progressos feitos pela ciência, é possível saber de
antemão a cor que terá o cabelo da criança e as doenças que poderá ter
no futuro, porque todas as características somáticas daquela pessoa
estão inscritas no seu código genético já no estado embrionário. Mas,
conhecê-lo em plenitude, só consegue o Pai do Céu que o criou: o mais
precioso, o mais importante só Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é
aquela criança, qual é a sua identidade mais profunda. A mãe, que o traz
no ventre, precisa de pedir luz a Deus para poder conhecer em
profundidade o seu próprio filho e saber esperá-lo como ele é. Alguns
pais sentem que o seu filho não chega no melhor momento; faz-lhes falta
pedir ao Senhor que os cure e fortaleça para aceitarem plenamente aquele
filho, para o esperarem com todo o coração. É importante que aquela
criança se sinta esperada. Não é um complemento ou uma solução para uma
aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e não pode
ser usado para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se
esta nova vida te será útil ou não, se possui características que te
agradam ou não, se corresponde ou não aos teus projectos e sonhos.
Porque «os filhos são uma dádiva! Cada um é único e irrepetível (...).
Um filho é amado porque é filho: não, porque é bonito ou porque é deste
modo ou daquele, mas porque é filho! Não, porque pensa como eu, nem
porque encarna as minhas aspirações. Um filho é um filho».[186]
O amor dos pais é instrumento do amor de Deus Pai, que espera com
ternura o nascimento de cada criança, aceita-a incondicionalmente e
acolhe-a gratuitamente.
171 A cada mulher grávida, quero pedir-lhe afectuosamente: Cuida da
tua alegria, que nada te tire a alegria interior da maternidade. Aquela
criança merece a tua alegria. Não permitas que os medos, as
preocupações, os comentários alheios ou os problemas apaguem esta
felicidade de ser instrumento de Deus para trazer uma nova vida ao
mundo. Ocupa-te daquilo que é preciso fazer ou preparar, mas sem
obsessões, e louva como Maria: «A minha alma glorifica o Senhor e o meu
espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na
humildade da sua serva» (Lc 1, 46-48). Vive, com sereno
entusiasmo, no meio dos teus incómodos e pede ao Senhor que guarde a tua
alegria para poderes transmiti-la ao teu filho.
Amor de mãe e de pai
172. «Recém-nascidas, as crianças começam a receber em dom,
juntamente com o alimento e os cuidados, a confirmação das qualidades
espirituais do amor. Os gestos de amor passam através do dom do seu nome
pessoal, da partilha da linguagem, das intenções dos olhares, das
iluminações dos sorrisos. Assim, aprendem que a beleza do vínculo entre
os seres humanos mostra a nossa alma, procura a nossa liberdade, aceita a
diversidade do outro, reconhece-o e respeita-o como interlocutor. (...)
E isto é amor, que contém uma centelha do amor de Deus».[187]
Toda a criança tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai,
ambos necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Como
disseram os bispos da Austrália, ambos «contribuem, cada um à sua
maneira, para o crescimento duma criança. Respeitar a dignidade duma
criança significa afirmar a sua necessidade e o seu direito natural a
ter uma mãe e um pai».[188]
Não se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também
do amor entre eles, captado como fonte da própria existência, como ninho
acolhedor e como fundamento da família. Caso contrário, o filho parece
reduzir-se a uma posse caprichosa. Ambos, homem e mulher, pai e mãe, são
«cooperadores do amor de Deus criador e como que os seus intérpretes».[189]
Mostram aos seus filhos o rosto materno e o rosto paterno do Senhor.
Além disso, é juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do
encontro entre seres diferentes, onde cada um contribui com a sua
própria identidade e sabe também receber do outro. Se, por alguma razão
inevitável, falta um dos dois, é importante procurar alguma maneira de o
compensar, para favorecer o adequado amadurecimento do filho.
173. O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas
crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje reconhecemos
como plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram
estudar, trabalhar, desenvolver as suas capacidades e ter objectivos
pessoais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar a necessidade que as
crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses de
vida. A realidade é que «a mulher apresenta-se diante do homem como mãe,
sujeito da nova vida humana, que nela é concebida e se desenvolve, e
dela nasce para o mundo».[190]
O enfraquecimento da presença materna, com as suas qualidades
femininas, é um risco grave para a nossa terra. Aprecio o feminismo,
quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade. Com
efeito, a grandeza das mulheres implica todos os direitos decorrentes da
sua dignidade humana inalienável, mas também do seu génio feminino,
indispensável para a sociedade. As suas capacidades especificamente
femininas – em particular a maternidade – conferem-lhe também deveres,
já que o seu ser mulher implica também uma missão peculiar nesta terra,
que a sociedade deve proteger e preservar para bem de todos.[191]
174. De facto, «as mães são o antídoto mais forte contra o
propagar-se do individualismo egoísta. (...) São elas que testemunham a
beleza da vida».[192]
Sem dúvida, «uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana,
porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a
ternura, a dedicação, a força moral. As mães transmitem, muitas vezes,
também o sentido mais profundo da prática religiosa: nas primeiras
orações, nos primeiros gestos de devoção que uma criança aprende (...).
Sem as mães, não somente não haveria novos fiéis, mas a fé perderia boa
parte do seu calor simples e profundo. (...) Queridas mães, obrigado,
obrigado por aquilo que sois na família e pelo que dais à Igreja e ao
mundo».[193]
175. A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e compaixão, ajuda a
despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um lugar bom
que o acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece a
capacidade de intimidade e a empatia. Por sua vez, a figura do pai ajuda
a perceber os limites da realidade, caracterizando-se mais pela
orientação, pela saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo
convite a esforçar-se e lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade
masculina, que por sua vez combine no seu trato com a esposa o carinho e
o acolhimento, é tão necessário como os cuidados maternos. Há funções e
tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada
família, mas a presença clara e bem definida das duas figuras, masculina
e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da
criança.
176. Diz-se que a nossa sociedade é uma «sociedade sem pais». Na
cultura ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente ausente,
distorcida, desvanecida. Até a virilidade pareceria posta em questão.
Verificou-se uma compreensível confusão, já que, «num primeiro momento,
isto foi sentido como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai
como representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da
felicidade dos filhos e impedimento à emancipação e à autonomia dos
jovens. Por vezes, havia casas em que no passado reinava o
autoritarismo, em certos casos até a prepotência».[194]
Mas, «como acontece muitas vezes, passa-se de um extremo ao outro. O
problema nos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do
pai, mas sim a sua ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o
pai está tão concentrado em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas
próprias realizações individuais que até se esquece da família. E deixa
as crianças e os jovens sozinhos».[195]
A presença paterna e, consequentemente, a sua autoridade são afectadas
também pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comunicação e
à tecnologia da distracção. Além disso, hoje, a autoridade é olhada com
suspeita e os adultos são duramente postos em discussão. Eles próprios
abandonam as certezas e, por isso, não dão orientações seguras e bem
fundamentadas aos seus filhos. Não é saudável que sejam invertidas as
funções entre pais e filhos: prejudica o processo adequado de
amadurecimento que as crianças precisam de fazer e nega-lhes um amor
capaz de as orientar e que as ajude a maturar.[196]
177. Deus coloca o pai na família, para que, com as características
preciosas da sua masculinidade, «esteja próximo da esposa, para
compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja
próximo dos filhos no seu crescimento: quando brincam e quando se
aplicam, quando estão descontraídos e quando se sentem angustiados,
quando se exprimem e quando permanecem calados, quando ousam e quando
têm medo, quando dão um passo errado e quando voltam a encontrar o
caminho; pai presente, sempre. Estar presente não significa ser
controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam os
filhos».[197]
Alguns pais sentem-se inúteis ou desnecessários, mas a verdade é que
«os filhos têm necessidade de encontrar um pai que os espera quando
voltam dos seus fracassos. Farão de tudo para não o admitir, para não o
revelar, mas precisam dele».[198] Não é bom que as crianças fiquem sem pais e, assim, deixem de ser crianças antes do tempo.
Fecundidade alargada
178. Àqueles que não podem ter filhos, lembramos que «o matrimónio
não foi instituído só em ordem à procriação (...). E por isso, mesmo que
faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimónio
conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de
toda a vida».[199] Além disso, «a maternidade não é uma realidade exclusivamente biológica, mas expressa-se de diversas maneiras».[200]
179. A adopção é um caminho para realizar a maternidade e a
paternidade de uma forma muito generosa, e desejo encorajar aqueles que
não podem ter filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal para receber
quem está privado de um ambiente familiar adequado. Nunca se
arrependerão de ter sido generosos. Adoptar é o acto de amor que oferece
uma família a quem não a tem. É importante insistir para que a
legislação possa facilitar o processo de adopção, sobretudo nos casos de
filhos não desejados, evitando assim o aborto ou o abandono. Aqueles
que assumem o desafio de adoptar e acolhem uma pessoa de maneira
incondicional e gratuita, tornam-se mediação do amor de Deus que diz:
«Ainda que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria»
(cf. Is 49, 15).
180. «A opção da adopção e do acolhimento exprime uma fecundidade
particular da experiência conjugal, mesmo para além dos casos de esposos
com problemas de fertilidade (...). Ao contrário das situações em que o
filho é desejado a todo o custo, como um direito ao próprio
completamento, a adopção e o acolhimento, rectamente compreendidos,
mostram um aspecto importante da paternidade e da filiação ajudando a
reconhecer que os filhos, quer naturais quer adoptivos ou acolhidos, são
em si mesmos outro sujeito e é preciso recebê-los, amá-los, cuidar
deles e não apenas trazê-los ao mundo. O interesse prevalecente da
criança deveria sempre inspirar as decisões sobre a adopção e o
acolhimento».[201]
Por outro lado, «deve-se impedir o tráfico de crianças entre países e
continentes, por meio de oportunas medidas legislativas e controle
estatal».[202]
181. Convém lembrar-nos também de que a procriação e a adopção não
são as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo a família
com muitos filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está
inserida, desenvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie
de extensão do amor que a sustenta. As famílias cristãs não esqueçam
que «a fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele.
(...) A cada um de nós cabe um papel especial na preparação da vinda do
Reino de Deus».[203]
A família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando
proteger-se da sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à
procura de solidariedade. Assim transforma-se num lugar de integração da
pessoa com a sociedade e num ponto de união entre o público e o
privado. Os cônjuges precisam de adquirir consciência clara e convicta
dos seus deveres sociais. Quando isto acontece, não diminui o carinho
que os une; antes, enche-se de nova luz, como está expresso nos
seguintes versos:
«As tuas mãos são a minha carícia,
o meu despertar diário
amo-te porque tuas mãos
trabalham pela justiça.
Se te amo, é porque és
o meu amor, o meu cúmplice e tudo
e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois».[204]
182. Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como demasiado
diferente ou «separada». Para evitar este risco, lembremo-nos que a
família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não era vista como uma
família «estranha», como um lar alheado e distante da gente. Por isso
mesmo as pessoas sentiram dificuldade em reconhecer a sabedoria de Jesus
e diziam: «De onde é que isto lhe vem? (…) Não é Ele o carpinteiro, o
filho de Maria?» (Mc 6, 2.3). «Não é Ele o filho do carpinteiro?» (Mt
13, 55). Isto confirma que era uma família simples, próxima de todos,
integrada normalmente na povoação. E Jesus também não cresceu numa
relação fechada e exclusiva com Maria e José, mas de bom grado movia-se
na família alargada, onde encontrava os parentes e os amigos. Isto
explica por que, quando regressavam de Jerusalém, os seus pais
admitissem a possibilidade de o Menino de doze anos vagar pela caravana
um dia inteiro, ouvindo as histórias e partilhando as preocupações de
todos: «Pensando que Ele Se encontrava na caravana, fizeram um dia de
viagem» (Lc 2, 44). Mas, às vezes, acontece que algumas famílias
cristãs, pela linguagem que usam, a maneira de dizer as coisas, o estilo
do seu tratamento, a repetição constante de dois ou três assuntos, são
vistas como distantes, separadas da sociedade, e até os próprios
parentes se sentem desprezados ou julgados por elas.
183. Um casal de esposos, que experimenta a força do amor, sabe que
este amor é chamado a sarar as feridas dos abandonados, estabelecer a
cultura do encontro, lutar pela justiça. Deus confiou à família o
projecto de tornar «doméstico» o mundo,[205]
de modo que todos cheguem a sentir cada ser humano como um irmão: «Um
olhar atento à vida quotidiana dos homens e das mulheres de hoje
demonstra imediatamente a necessidade que há, em toda a parte, duma
vigorosa injecção de espírito familiar. (...) Não só a organização da
vida comum encalha cada vez mais numa burocracia totalmente alheia aos
vínculos humanos fundamentais, mas até o costume social e político
mostra frequentemente sinais de degradação».[206]
Pelo contrário, as famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos
pobres, são capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver
pior do que elas. Se realmente têm a peito o Evangelho, não podem
esquecer o que diz Jesus: «Sempre que fizestes isto a um destes meus
irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Em
última análise, vivem o que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste
texto: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus
amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos
ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim
retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados,
os coxos e os cegos. E serás feliz» (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui está o segredo duma família feliz.
184. Com o testemunho e também com a palavra, as famílias falam de
Jesus aos outros, transmitem a fé, despertam o desejo de Deus e mostram a
beleza do Evangelho e do estilo de vida que nos propõe. Assim os
esposos cristãos pintam o cinzento do espaço público, colorindo-o de
fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis, fé
luminosa, esperança activa. A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se
em mil e uma maneiras de tornar o amor de Deus presente na sociedade.
Distinguir o Corpo
185. Nesta linha, convém tomar muito a sério um texto bíblico que
habitualmente é interpretado fora do seu contexto ou duma maneira muito
geral, pelo que é possível negligenciar o seu sentido mais imediato e
directo, que é marcadamente social. Trata-se da primeira Carta aos
Coríntios (11, 17-34), onde São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa
da comunidade. Nela, algumas pessoas facultosas tendiam a discriminar os
pobres, e isto verificava-se mesmo na ágape que acompanhava a
celebração da Eucaristia. Enquanto os ricos se deleitavam com seus
manjares, os pobres olhavam e passavam fome: «Enquanto um passa fome,
outro fica embriagado. Porventura não tendes casas para comer e beber?
Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada
têm?» (vv. 21-22).
186. A Eucaristia exige a integração no único corpo eclesial. Quem se
abeira do Corpo e do Sangue de Cristo não pode ao mesmo tempo ofender
aquele mesmo Corpo, fazendo divisões e discriminações escandalosas entre
os seus membros. Na realidade, trata-se de «distinguir» o Corpo do
Senhor, de O reconhecer com fé e caridade, quer nos sinais sacramentais
quer na comunidade; caso contrário, come-se e bebe-se a própria
condenação (cf. v. 29). Este texto bíblico é um sério aviso para as
famílias que se fecham na própria comodidade e se isolam e, de modo
especial, para as famílias que ficam indiferentes aos sofrimentos das
famílias pobres e mais necessitadas. Assim, a celebração eucarística
torna-se um apelo constante a cada um para que «se examine a si mesmo»
(v. 28), a fim de abrir as portas da própria família a uma maior
comunhão com os descartados da sociedade e depois, sim, receber o
sacramento do amor eucarístico que faz de nós um só corpo. Não se deve
esquecer que «a “mística” do sacramento tem um carácter social».[207]
Quando os comungantes se mostram relutantes em deixar-se impelir a um
compromisso a favor dos pobres e atribulados ou consentem diferentes
formas de divisão, desprezo e injustiça, recebem indignamente a
Eucaristia. Ao contrário, as famílias, que se alimentam da Eucaristia
com a disposição adequada, reforçam o seu desejo de fraternidade, o seu
sentido social e o seu compromisso para com os necessitados.
A vida na família em sentido amplo
187. O núcleo familiar restrito não deveria isolar-se da família
alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos.
Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou pelo
menos de companhia e gestos de carinho, ou pode haver grandes
sofrimentos que precisam de conforto.[208]
Às vezes o individualismo destes tempos leva a fechar-se na segurança
dum pequeno ninho e a sentir os outros como um incómodo. Todavia este
isolamento não proporciona mais paz e felicidade, antes fecha o coração
da família e priva-a do horizonte amplo da existência.
Ser filho
188. Em primeiro lugar, falemos dos pais próprios. Jesus lembrava aos
fariseus que o abandono dos pais é contrário à Lei de Deus (cf. Mc
7, 8-13). Não faz bem a ninguém perder a consciência de ser filho. Em
cada pessoa, «mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando passa também
a ser progenitora ou desempenha funções de responsabilidade, por baixo
de tudo isso permanece a identidade de filho. Todos somos filhos. E isto
recorda-nos sempre que a vida não no-la demos sozinhos, mas
recebemo-la. O grande dom da vida é o primeiro presente que recebemos».[209]
189. Por isso, «o quarto mandamento pede aos filhos (…) que honrem o pai e a mãe (cf. Ex
20, 12). Este mandamento vem logo após aqueles que dizem respeito ao
próprio Deus. Com efeito, contém algo de sagrado, algo de divino, algo
que está na raiz de todos os outros tipos de respeito entre os homens.
E, na formulação bíblica do quarto mandamento, acrescenta-se: “para que
se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá”.
O vínculo virtuoso entre as gerações é garantia de futuro e de uma
história verdadeiramente humana. Uma sociedade de filhos que não honram
os pais é uma sociedade sem honra (...). É uma sociedade destinada a
encher-se de jovens áridos e ávidos».[210]
190. Mas há também a outra face da moeda: «O homem deixará o pai e a mãe» (Gn
2, 24), diz a Palavra de Deus. Às vezes, isto não é cumprido, nunca se
chegando a assumir o matrimónio, porque falta esta renúncia e esta
dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem transcurados, mas, para
unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los, de modo que o novo lar seja
a morada, a protecção, a plataforma e o projecto, e seja possível
tornar-se verdadeiramente «uma só carne» (Gn 2, 24). Sucede, em
alguns casais, ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que entretanto
se dizem aos pais, chegando ao ponto de se importar mais com as opiniões
destes do que com os sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil
manter esta situação por muito tempo, e só provisoriamente poderia ter
lugar, isto é, enquanto se criam as condições para crescer na confiança e
no diálogo. O matrimónio desafia a encontrar uma nova maneira de ser
filho.
Os idosos
191. «Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já não tiver forças» (Sl
71/70, 9). É o brado do idoso, que teme o esquecimento e o desprezo.
Assim como Deus nos convida a ser seus instrumentos para escutar a
súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos o brado dos idosos.[211]
Isto interpela as famílias e as comunidades, porque «a Igreja não pode
nem quer conformar-se com uma mentalidade de impaciência, e muito menos
de indiferença e desprezo, em relação à velhice. Devemos despertar o
sentido colectivo de gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso
sentir-se parte viva da sua comunidade. Os idosos são homens e mulheres,
pais e mães que, antes de nós, percorreram o nosso próprio caminho,
estiveram na nossa mesma casa, combateram a nossa mesma batalha diária
por uma vida digna».[212]
Por isso, «como gostaria duma Igreja que desafia a cultura do descarte
com a alegria transbordante dum novo abraço entre jovens e idosos!»[213]
192. São João Paulo II convidou-nos a prestar atenção ao lugar do
idoso na família, porque há culturas que, «especialmente depois dum
desenvolvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e
continuam a forçar, os idosos a situações inaceitáveis de
marginalização».[214] Os idosos ajudam a perceber «a continuidade das gerações», com «o carisma de lançar uma ponte»[215]
entre elas. Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos
grandes valores aos seus netos, e «muitas pessoas podem constatar que
devem a sua iniciação na vida cristã precisamente aos avós».[216]
As suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as
crianças a reconhecer que a história não começa com elas, que são
herdeiras dum longo caminho e que é necessário respeitar o fundamento
que as precede. Quem quebra os laços com a história terá dificuldade em
tecer relações estáveis e reconhecer que não é o dono da realidade. Com
efeito, «a atenção aos idosos distingue uma civilização. Numa
civilização, presta-se atenção ao idoso? Há lugar para o idoso? Esta
civilização irá em frente, se souber respeitar a sabedoria dos idosos».[217]
193. A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa
sociedade. É a mentalidade imatura do «já está ultrapassado». Conhecer e
ser capaz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a única
possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode
educar sem memória: «Recordai os dias passados» (Heb 10, 32). As
histórias dos idosos fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os
ligam à história vivida tanto pela família como pela vizinhança e o
país. Uma família que não respeita nem cuida dos seus avós, que são a
sua memória viva, é uma família desintegrada; mas uma família que
recorda é uma família com futuro. Por isso, «numa civilização em que não
há espaço para os idosos ou onde eles são descartados porque criam
problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte»,[218] porque «se separa das próprias raízes».[219]
O fenómeno contemporâneo de sentir-se órfão, em termos de
descontinuidade, desenraizamento e perda das certezas que dão forma à
vida, desafia-nos a fazer das nossas famílias um lugar onde as crianças
possam lançar raízes no terreno duma história colectiva.
Ser irmão
194. A relação entre os irmãos aprofunda-se com o passar do tempo, e
«o laço de fraternidade que se forma na família entre os filhos, quando
se verifica num clima de educação para a abertura aos outros, é uma
grande escola de liberdade e de paz. Em família, entre irmãos,
aprendemos a convivência humana (…). Talvez nem sempre estejamos
conscientes disto, mas é precisamente a família que introduz a
fraternidade no mundo. A partir desta primeira experiência de
fraternidade, alimentada pelos afectos e pela educação familiar, o
estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade
inteira».[220]
195. Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar
uns dos outros, de ajudar e ser ajudado. Por isso, «a fraternidade na
família resplandece de modo especial quando vemos a solicitude, a
paciência e o carinho com que é circundado o irmãozinho ou a irmãzinha
mais frágil, doente ou deficiente».[221] Faz falta reconhecer que «ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência forte, inestimável, insubstituível»,[222]
mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como
irmãos. Esta aprendizagem, por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola
de sociabilidade. Nalguns países, existe uma forte tendência para ter
apenas um filho, pelo que a experiência de ser irmão começa a ser rara.
Nos casos em que não se pôde ter mais de um filho, é preciso encontrar
formas de a criança não crescer sozinha ou isolada.
Um coração grande
196. Com efeito, além do círculo pequeno formado pelos cônjuges e
seus filhos, temos a família alargada, que não pode ser ignorada. Com
efeito, «o amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de forma
derivada e ampla, o amor entre os membros da mesma família – entre pais e
filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e familiares – é animado e
impelido por um dinamismo interior e incessante, que leva a família a
uma comunhão sempre mais profunda e intensa, fundamento e alma da
comunidade conjugal e familiar».[223]
Aí se integram também os amigos e as famílias amigas, e mesmo as
comunidades de famílias que se apoiam mutuamente nas suas dificuldades,
no seu compromisso social e na fé.
197. Esta família alargada deveria acolher, com tanto amor, as mães
solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem
continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que
requerem muito carinho e proximidade, os jovens que lutam contra uma
dependência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a
solidão, os idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos,
até incluir no seio dela «mesmo os mais desastrados nos comportamentos
da sua vida».[224]
E pode também ajudar a compensar as fragilidades dos pais, ou a
descobrir e denunciar a tempo possíveis situações de violência ou mesmo
de abuso sofridas pelas crianças, dando-lhes um amor sadio e um
sustentáculo familiar, quando os seus pais não o podem assegurar.
198. Por fim, não se pode esquecer que, nesta família alargada, estão
também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge. Uma delicadeza
própria do amor é evitar vê-los como concorrentes, como pessoas
perigosas, como invasores. A união conjugal exige que se respeite as
suas tradições e costumes, se procure compreender a sua linguagem,
evitar maledicências, cuidar deles e integrá-los dalguma forma no
próprio coração, embora se deva preservara legítima autonomia e a
intimidade do casal. Estas atitudes são também uma excelente maneira de
exprimir a generosidade da dedicação amorosa ao próprio cônjuge.
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