Pe. Valdes Aparecido
Ferreira Lima
Texto bíblico: Mt 5,13-16
I - Auto-Identidade e Os Níveis de Identificação
Conhecer-se
a si mesmo é uma necessidade e um dever ao qual ninguém pode subtrair-se. O
homem tem necessidade de saber quem é. Não pode viver, se não descobre que
sentido tem a sua vida. Arrisca-se a ser infeliz, se não reconhecer a sua
dignidade. Por isso, podemos dizer que estamos, cada dia, a procura de nosso
eu. É uma busca contínua, embora às vezes inconsciente, frequentemente difícil
e aparentemente contraditória. Entretanto, não acaba nunca... E é justo que
seja assim. Com efeito, a identidade não é dado biológico, ínsita nos nossos
cromossomos e facilmente reconhecível. Tampouco é uma verdade a ser contemplada
e na qual se deve crer, de maneira mais ou menos estática e passiva. Quando
muito, é um ponto de chegada, uma vocação totalmente pessoal a ser realizada.
De fato, não podemos saber o que somos e intuir o que fomos chamados a ser, mas
só quando vivermos tudo isso teremos descoberto o nosso eu. E se esta caminhada
à procura do nosso eu passar por dúvidas, inseguranças, ou até mesmo
verdadeiras crises de identidade, haverá também sempre boas razões para se
esperar que a nossa busca, se honesta e persistente, há de ser recompensada.[1]
É uma necessidade fundamental para o homem ter um conceito correto
do próprio eu, lá onde o termo correto significa: realista e estavelmente positivo. De outro lado, é muito difícil e
frustrante conviver com um senso negativo da própria identidade, ou buscar
compensações ilusórias para recuperar tal positividade.[2]
Tomando as agudas reflexões do Pe. Amedeo Cencine, vejamos em
que níveis e segundo quais conteúdos é possível nos auto-identificarmos:
Nível Corporal
Nesse
nível a auto-identificação se dá com o próprio corpo. Refere-se a um dado
concreto, imediatamente perceptível, determinado por precisas habilidades
físicas e qualidades estéticas. Diz respeito ao momento mais evidente e
elementar da auto-identificação humana enquanto tal, uma vez que até mesmo as
crianças conseguem se auto-identificar nesse nível.
As
dificuldades aparecem quando, na fase adulta, não se consegue ir além desse
nível elementar, limitando o conceito que se tem de si mesmo à sua
individualidade corpórea. Pense-se, por exemplo, na busca angustiada por um
corpo forte, sadio, atraente que impera em nossos dias.
Nível Psíquico
Neste nível nos identificamos
com os nossos talentos e qualidades: “aqui
a pessoa enfatiza o que possui e o que espera conquistar com ‘seus’ próprios
meios, graças a ‘seus’ esforços”.[3]
É um nível superior com relação ao primeiro. Com ele descobrimos o que nos
diferencia seja dos outros animais seja dos nossos semelhantes:
Entretanto,
esse nível apresenta riscos evidentes: o risco de uma visão parcial do homem, limitada a aspectos particulares que nem
são os mais importantes. Consequentemente, quando um pessoa se identifica só e
sobretudo nesse nível, terá tal consciência de suas possibilidades e
potencialidades, que busca sua auto-realização apenas naquele sentido,
acreditando, plena e unicamente, ser o criador e senhor de si e do que possui.[4]
Segundo
Cencine, a auto-identificação psíquica tem, ainda, como frutos desastrosos: a
chamada dependência da função, a necessidade extrema do resultado positivo, o
horror ao fracasso, a não aceitação do pecado, o complexo de inferioridade,
entre outros.
Nível Ontológico
Os
níveis corporal e psíquico, pois, não são, por si mesmos, suficientes para dar
ao homem um sentido adequado do próprio eu. Por mais que sejam importantes,
jamais poderão, por si sós, satisfazer à exigência fundamental de se ter um
sentido substancial e estavelmente positivo da própria identidade (...). Trata-se
(...) [então] de fundamentar a própria identidade sobre conteúdos mais
“radicais”, como aqueles que o nível ontológico oferece.
Nesse
nível, definimo-nos por aquilo somos e
por aquilo que somos chamados a ser. Em termos mais precisos: a pessoa
descobre e constrói a própria identidade em torno da relação entre o eu atual, com suas necessidades e
potencialidades, e o eu ideal, com
seus valores objetivos e suas finalidades. Não é mais, ou não é mais
simplesmente aquilo que possuímos que
irá decidir da nossa positividade, mas o que somos no mais profundo da nossa identidade atual e ideal, como
seres humanos, como cristãos (...). O eu atual e o eu ideal sãos os dois
elementos estruturais desse tipo de auto-identificação.[5]
Tal indispensável e fecunda relação entre o eu atual e o eu
ideal se dá em nós quando reconhecemos e vivemos o nosso ‘ser imagem e
semelhança do Deus’, por meio de um radical e apaixonado seguimento de Cristo.
É Cristo que revelando o mistério do Pai, revela o homem ao
homem e lhe faz nota a sua altíssima vocação (cfr. GS 22). Portanto, se
quisermos descobrir quem somos e quem somos chamados a ser, as Escrituras e
vida de tantos homens e mulheres, filhos da Igreja, que se colocaram no
seguimento radical e apaixonado de Cristo testemunham com força: precisamos nos
deixar alcançar pelo Filho, sermos introduzidos no seu mistério, sermos
transformados pela sua vida em nossa vida, de modo que o seu caminho pascal
qualifique, transforme e revele o nosso caminho, a nossa identidade, a nossa
mais verdadeira vocação: àquela de vivermos como filhos livres para amar e
sermos amados, segundo a beleza sem igual do amor divino e humano do Filho.
Contemplaremos as dimensões dos afetos e da sexualidade a partir
dessa irrenunciável perspectiva. Isso porque cremos firmemente que a nossa mais
verdadeira identidade e vocação “está escondida em Deus com Cristo” (Col 3,3). Ele é o nosso critério,
nele contemplamos o homem pleno, belo e feliz que somos chamados a ser. O
Cristo, o “mais belo entre os filhos dos homens” (Sl 45,3), apresenta-se como 0 nosso modelo, a nossa companhia, o
nosso caminho, por fim, a nossa mais bela meta.
Dessa foram, é ao mesmo tempo iluminados e desejosos por
alcançar a beleza da estatura de Cristo, nossa única vocação, que nos dispomos
trilhar esse caminho de formação.
[1] CENCINE A., Amarás o Senhor teu Deus: psicologia do encontro com Deus, Paulinas,
São Paulo 1989, 8.
[2] CENCINE A., Amarás o Senhor teu Deus: psicologia do encontro com Deus, Paulinas,
São Paulo 1989, 17.
[3] CENCINE A., Amarás o Senhor teu Deus: psicologia do encontro com Deus, Paulinas,
São Paulo 1989, 19.
[4] CENCINE A., Amarás o Senhor teu Deus: psicologia do encontro com Deus, Paulinas,
São Paulo 1989, 19.
[5][5] CENCINE A., Amarás o Senhor teu Deus: psicologia do encontro com Deus, Paulinas,
São Paulo 1989, 27.